Algum dia essa dor lhe será útil

Algum dia essa dor lhe será útil

Uma reflexão de como o encontro da dor e da arte é inevitável em momentos difíceis e como isso faz sentido durante o isolamento social da quarentena.

Oi! Faz tempo que não apareço por aqui, não é mesmo?

Talvez só uma tragédia global como uma pandemia tenha sido capaz de me trazer de volta para cá.

Sim, eu não ando tendo muita vontade de encarar os meus medos de frente escrevendo em um blog. Só que hoje… Eu senti uma vontade tão grande de falar com você. Falar sobre algo que pauta meu trabalho como artista, que me move como ser humano.

A dor.

Quem me conhece de outros tempos de internet sabe como eu era um verdadeiro inferno em palavras. Eu sempre senti demais as coisas e precisava colocar pra fora.

Tempos atrás o fotolog.com resolveu fechar pela primeira vez. Antes que isso rolasse, todo mundo revisitou as suas vergonhosas contas no site, inclusive eu. Fiquei pasma na tempestade que eram os meus textos. Eu alimentei aquele diário fotográfico dos 15 aos 18 anos (entre 2004 e 2007) e eu era o mais puro poço de pessimismo e drama. Você pode pensar que é normal da idade, mas não era. O que me impressionava naquelas linhas era como eu não fazia a menor questão de esconder toda a minha dor. De rasgar o verbo de como eu me odiava, de como eu estava triste.

Eu tentava fazer isso através do texto, das fotos e, de certa forma, era um auto ficção barata. Em algumas coisas a realidade era muito pior, mas eu não tinha coragem de contar. Em outras coisas, não faziam o menor sentido e talvez nem fossem reais, mas eu sentia. Demais.

O tempo passou e isso foi migrando aos poucos pro Twitter. Eu sempre fui uma heavy user dessa rede social. Criei a minha primeira conta em 2007. Muitas coisas aconteceram na minha vida através dela. Boa parte do meu grupo de amigos atual eu encontrei por lá. Foi a forma mais fácil de me embrenhar no meio dos quadrinhos que eu gostava e conhecer pessoas que faziam o mesmo. Mas, mesmo assim, o fato de escrever coisas pessoais ali incomodou muita gente, tanto pessoas qua se afastaram quanto até namorados que ficavam querendo regular o conteúdo que eu postava lá. Incomodava demais e invadia a privacidade deles, eles diziam.

“Larissa, você quer atenção demais.”

Pode até ser uma parte sobre isso mas não é apenas querer atenção, sabe? É sobre a verborragia ansiosa do meu cérebro que fala sem parar e precisa vazar tanto barulho por algum lugar. Eu prefiro não dizer. Eu prefiro digitar. Eu prefiro pegar a caneta e escrever sem parar até tirar de mim aquela ânsia bizarra. Eu não consigo engolir esse turbilhão de emoções e fazer de conta que nada está acontecendo.

Então, em 2015, eu estava fazendo o meu processo de terapia pela primeira vez. Eu havia iniciado as sessões em novembro de 2014 e me vi num novo momento, descobrindo muitas coisas. Estava acessando potenciais que até então eu tinha ignorado ou não tinha conseguido alcançar. Nessa época eu comecei a estudar roteiro de quadrinhos apenas porque eu achava que estava na hora de sair da zona de conforto. E as sincronicidades deram certo, pois ali eu entendi que estava uma ferramenta poderosa pra canalizar essa energia antes simplesmente incontrolável.

Criar histórias para espantar os meus demônios.

No começo foi como me sentir nua na frente das pessoas. Além da vergonha pela falta de técnica, eu também já sabia que ali tinham pedaços de mim ultra expostos. A diferença é que transcrevê-los para outras pessoas lerem na minha frente ou então eu mesma ler em voz alta era de um constrangimento quase lancinante. Um desafio a ser enfrentado fora da internet. Eu não estava acostumada a lidar com reações presenciais aos meus pensamentos mas, pra minha sorte, boa parte das pessoas não conseguia pescar as referências. As dores ali eram particulares demais para serem obviamente minhas.

Algumas experiências, em especial das histórias que criei são grandes catarses de momentos que eu estava passando por maus bocados. Nunca me esqueço da dor que senti ao terminar as últimas páginas de In Articulo Mortis (Coletânea Delirium Tremens), onde eu misturo algumas experiências pessoais. Eu estava sentada na minha cama e as lágrimas de raiva escorriam pelo rosto e pelo pescoço, de madrugada. Esse dia foi louco. No caso de Elusiva (Antologia VHS), boa parte do processo da história foi feita com uma dor surreal que eu estava sentindo em uma lesão da perna, além de estar com meu ego em frangalhos por uma experiência muito esquisita que eu tinha acabado de viver.

Eu me acostumei com o tempo. Além de ter o feedback de leitores e sites especializados, eu também tive a chance de presenciar gente lendo as minhas histórias pessoalmente. E como escrevo terror eu amo ver as reações de choque que essas histórias podem causar. É como se eu pudesse passar um pouquinho a agonia do que eu sinto durante o processo de criação dessas histórias de maneira concreta nas mãos dessas pessoas.

A magia está acontecendo o tempo todo.

Sabe, eu não sou uma pessoa cética. Acho que tudo o que a gente faz envolve a nossa energia e a nossa intenção de alguma forma. Quando você faz algo que envolve criação, existe ali uma concentração de um objetivo que vai ser alcançado que está além da matéria. Quando você cozinha, não é apenas sentir o sabor e matar a fome que te move, mas a ânsia de aplacar algo que está além dessas sensações físicas.

Isso também vale pra intenção que você tem em contar uma história. Hoje, olhando em retrocesso, eu consigo ver em quase todos os meus trabalhos momentos muito densos da minha existência condensados em páginas que, até o momento, foram gentilmente desenhadas por outras pessoas que ajudaram a dar vida para essas catarses. E isso nem sempre aconteceu de maneira consciente, mas é algo que sempre consigo perceber depois.

Tantos momentos de agonia, ansiedade, dor, tristeza ou desespero transformados em um entretenimento. Quem diria pode trazer diversas reações e razões para reflexão seria uma das coisas que me movem como escritora. Simplesmente me faz ter um sentido para essa vida e deixa as coisas mais leves.

O ônus: assim na terra como no céu.

Sinceramente, como uma colega ilustradora postou em seu Facebook certa vez: eu preferia não ter que passar por isso. Um processo que envolve sofrimento emocional é sempre complicado. Ter que transmutar algo tão denso para algo que se torne a diversão de alguém não é fácil.

Ainda sonho com o dia que serei capaz de fazer uma história de humor ou então algo emocionante para toda a família, mas infelizmente a era Happy Feet de George Miller ainda não chegou pra mim.

Mas quer saber? No fim das contas eu sinto até orgulho de ser essa pessoa que consegue canalizar a desgraceira da alma pra arte. Eu quero mais e eu penso que abraçar isso até quando não fizer mais sentido é o único caminho possível, por que é verdadeiro.

E no final…

O que quero dizer, meus caros amigos, é que toda a dor pode ser útil um dia se você souber canalizar ela. Ainda não sei fazer isso com excelência, até mesmo porque neste exato momento eu estou surtada e isolada, sem contato com meus amigos por vontade própria. Mas eu sei que a escrita pra mim é a cura. E eu tenho as ferramentas pra transformar toda essa merda de pandemia e isolamento social um dia em algo construtivo.

Mas não faça como eu: não se cobre pra ser nesse exato momento. Você ainda precisa passar por isso. Quando terminar, você me conta se dá certo pra você ou não. Ok? Eu prometo que volto aqui e conto pra vocês também como foi pra mim.

Um beijo.


 


1 thought on “Algum dia essa dor lhe será útil”

  • Eu tendo a respeitar as dores tanto quanto as alegrias, tento levar como se ambas fossem partes de minha vida: as alegrias os fins, as dores os meios. Falo isso da minha perspectiva de uma vida fácil, claro.

    E OBRIGADO PELO TEXTO!

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