Saiba como a violência doméstica e a religião se interligam em Lavagem, do artista Shiko

Eu sou apaixonada por histórias de horror mas, apesar de termos grandes nomes no Brasil que trabalham no gênero como o Zé do Caixão, eu sinto falta de coisas que conversem mais com a cultura brasileira nos dias de hoje. Se bem que é enorme a chance de ser mais um problema de divulgação do que de falta de produção criativa. Ultimamente eu estou cavocando mais o nosso acervo e descobrindo autores inspiradores.

Shiko é um artista que vem se destacando gradualmente no cenário nacional de quadrinhos e não é a toa: ele ganhou muitos holofotes após sua participação na Graphic MSP com uma história chamada Ingá para o personagem Piteco. Desde então, o artista vem lançando uma série de obras alternativas que falam muito sobre o seu estilo: a violenta e realista O Azul Indiferente do Céu, a erótica Talvez Seja Mentira, e agora Lavagem.

 

O pesadelo a beira-mar

 

Lavagem é uma HQ baseada em um roteiro de um curta premiado em 2012, também feito pelo roteirista. Infelizmente este curta ainda não chegou ao grande público para efeitos de comparação, mas será lançado em breve. A história foi lançada em um encadernado de luxo pela Editora Mino, que caprichou nos detalhes e deu um tratamento refinado a uma saga que poderia se passar no próprio inferno.

Lavagem - Shiko - Detalhes

Na história nós conhecemos um casal pobre que mora em meio a uma região poluída de mangue e vemos como a rotina de suas vidas miseráveis é afetada por suas crenças. A mulher analfabeta, que é apenas chamada de Irmã, é uma fervorosa crente que sempre vai a igreja e assiste cultos pela televisão. Omar, o marido, é um sujeito calado que sustenta a casa trabalhando com uma criação de porcos. Os dilemas e situações muito esquisitas se iniciam quando Omar desconfia que está sendo traído pela esposa e com uma visita de um pregador do evangelho durante uma maré alta.

 

Ler uma vez só não basta

 

Não sei se é uma história que fala especialmente comigo por uma série de questões pessoais, mas eu fiquei bem impressionada com o desenvolvimento. Não apenas por ser uma história forte, mas também por ter certos vácuos de interpretação completamente propositais. Alguém pode discordar de mim aqui, mas tive outra leitura da relação extra conjugal que acontece na HQ, bem diferente da maioria das resenhas e sinopses que li por aí.

A maioria das pessoas afirma que realmente existe um caso extra conjugal entre o rapaz da barca e a protagonista, mas no meu ponto de vista isso não acontece. Devo essa conclusão especialmente pelo fim da sequência de sexo entre os personagens, que tem uma lindíssima e bizarra transição para a mente perturbada de Omar, que fantasia as escapadas sexuais da moça de uma maneira em que ele sente prazer e ódio ao mesmo tempo, misturando tudo ao seu próprio universo. Isso deixa a história bem mais doentia, já que a convivência decadente entre os dois é totalmente ausente de carinho e cumplicidade, criando oportunidades para delírios como esse.

Lavagem - Shiko - Porcos

Neste caso, até mesmo o título é uma ferramenta para explicar o que acontece na cabeça do casal, que é alimentada pelos próprios delírios de ódio e de insatisfação com a própria vida. Esse tipo de loucura também se aplica à mente da mulher quando ela está ouvindo as palavras do pregador enquanto ele lê a Bíblia. O homem, que diz que ela deve assassinar o seu marido pois ele tem a mesma intenção devido às suas desconfianças, também é uma projeção da mente da moça sobre sua real vontade de transcender a sua própria realidade para começar uma nova vida.

Pra ter certeza do que estava acontecendo eu tive que ler duas vezes seguidas. O tamanho do mindfuck é grande.

 

Ligando os argumentos aos detalhes da vida real

 

Se existe um momento que estamos vivendo em diversos níveis é o de Lavagem. O Brasil, especialmente, tem sido inflamado por relatos diários de violência contra a mulher por causa do ciúme infundados de seus companheiros, famílias desestruturadas pela falta de amor e o fanatismo sendo usado como um instrumento de manipulação mental para fomentar o ódio e justificar ações de violência.

Lavagem - Shiko - Violência

Shiko leva as vulnerabilidades comumente encontradas nas periferias brasileiras ao extremo e utiliza as experiências traumáticas dos personagens para construir uma história de horror intensa e de redenção feminista, outro tema exaustivamente debatido hoje em dia.

 

Um futuro brilhante através do horror

 

É realmente um alívio ter cada vez mais acesso a histórias de terror e horror com um DNA plenamente brasileiro. O ano de 2015 em especial tem sido um momento incrível para as HQs nacionais e fico muito feliz de estar cada vez mais próxima a elas. O momento de valorizar os nossos artistas não poderia ser mais favorável.

Lavagem é um ótimo exemplo do potencial que temos aqui no Brasil. Shiko, que também ilustrou o quadrinho, tem uma forte identidade com suas personagens femininas e seus traços que transitam entre o realismo e a agressividade. Somada a história, que não deixa claro se os vácuos são propositais no meio do roteiro, o artista afirma sua linha criativa nada óbvia. A ansiedade para ler mais é inevitável. Então, se você gosta de histórias de terror, você precisa ler este quadrinho. Não é perfeito e é exatamente isso que o torna imenso em sua proposta. Imperdível.

Já leu Lavagem? Conhece mais obras de horror escritas por brasileiros? Conta pra gente nos comentários.


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